
Transtornos da eliminação: enurese e encoprese
A coordenação dos processos de controle das funções renais e intestinais é feita pelo lobo frontal e pela ponte do mesencéfalo. Esse controle, nos bebês, leva meses para se desenvolver. Por exemplo, bebês eliminam urina em quantidades pequenas a cada hora, geralmente estimulados pela alimentação. Em muitos casos o esvaziamento da bexiga é incompleto.
A capacidade da bexiga das crianças vai aumentando ao longo do tempo, por exemplo, entre 1 e 3 anos de idade, o controle inibitório vai sendo desenvolvido, o que permite o controle sobre os músculos da bexiga. Em sua maioria, o controle do intestino acontece antes do controle urinário.
Para avaliar a evacuação, é necessário determinar se ocorre com constipação ou sem, ou se há evacuação em excesso. O desenvolvimento sequencial da criança e do controle das funções intestinais acontece assim:
1º - controle ou continência fecal noturna
2º - controle ou continência fecal diurna
3º - controle ou continência urinária diurna
4º - controle ou continência urinária noturna
Esse controle vai se desenvolver gradualmente, com o tempo.
Muitos fatores podem afetar o aprendizado do uso do banheiro, como a capacidade intelectual, a maturidade social, determinantes culturais e a interação psicológica da criança com os pais. Além disso, a maturidade neurobiológica determinará a velocidade desse controle das eliminações, sendo que crianças com atraso no desenvolvimento também exibem atraso na continência urinária e fecal. É muito importante que os pais não confundam a incontinência urinária ou fecal como mau comportamento, pois ela é problemática para a criança e para os familiares.
Dentre os transtornos da eliminação se destacam a enurese e a encoprese. Enurese é a eliminação de urina de forma repetida nas roupas ou na cama e encoprese é a passagem repetida das fezes em locais inapropriados.
O diagnóstico de enurese só é feito após dos 5 anos de idade e da encoprese após os 4 anos, pois nestas idades se espera que a criança tenha desenvolvido estes controles.
E para este desenvolvimento, é necessário que a criança consiga dar atenção, que tenha motivação e habilidades fisiológicas para desenvolver essas competências.
Encoprese é determinada por defecação em locais inapropriados, como nas roupas ou em outros lugares, de forma involuntária ou intencional, pelo menos uma vez por mês, durante 3 meses consecutivos. A constipação pode estar presente em até 80% das crianças, sendo a função intestinal desregulada, com movimentos intestinais de frequência alterada, cursando com constipação ou dor abdominal recorrente e até com dor ao defecar.
A enurese é caracterizada pela eliminação de urina, intencional ou involuntária, nas roupas ou na cama. Deve ocorrer por pelo menos 3 meses, com frequência de 2 vezes por semana, ou causar sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo social ou acadêmico.
ENCOPRESE
Afeta aproximadamente 3% das crianças com 4 anos de idade e 1,6% daquelas com 10 anos de idade. A tendência é que a encoprese diminua drasticamente com o avançar da idade, sendo cerca de 0,75% a prevalência por volta dos 10-12 anos.
A prevalência mundial gira em torno de 0,8% a 7,8%, sendo que na cultura ocidental aos 4 anos de idade mais de 95% das crianças já desenvolveu o controle sobre a eliminação de fezes e aos 5 anos, mais de 99%. Em jovens com desenvolvimento intelectual normal, a encoprese é quase ausente aos 16 anos, sendo 3-6 vezes mais frequente no sexo masculino do que no feminino. E mais, há uma forte relação com a enurese.
Em torno de 90% da encoprese infantil é funcional, pois as crianças tendem a segurar as fezes através da contração dos glúteos, apertando o esfíncter anal externo. Como consequência, as fezes ficam retidas por mais tempo, ficam ressecadas, endurecidas e a evacuação se torna dolorosa, causando medo de defecar novamente. Este ciclo acaba alimentando o comportamento de retenção.
As fezes impactadas no intestino são consequência do hábito de retenção, que é resultante de uma interação complicada entre fatores fisiológicos e psicológicos, acaba levando ao extravasamento de fezes por incontinência extravasada. Mais de 75% das crianças com encoprese exibem este padrão.
A intervenção comportamental tem a finalidade de reduzir a constipação e enfatizar o uso adequado do banheiro. O treinamento inadequado ou a falta de treinamento dificultam o desenvolvimento da criança. Desta forma, crianças com encoprese pode se sujar involuntariamente, pois elas têm controle ineficiente do esfíncter anal ou por fluido excessivo causado por extravasamento de retenção.
O diagnóstico diferencial deve ser feito com inervação anormal da região anorretal, displasia neuronal intestinal, dano à medula espinhal e Doença de Hirschsprung.
Em comparação com crianças saudáveis, as crianças encopréticas tem uma frequência maior de histórico de abuso sexual conhecido e de outros transtornos psiquiátricos. Porém, ter encoprese não é indicador específico de abuso sexual (atenção!!!).
Embora pareça óbvio, algumas pessoas não entendem que as tentativas de defecar podem se tornar dolorosas, o que leva ao medo e a mais retenção por parte da criança, resultando em resistência a mudar esse padrão comportamental. Brigar com as crianças para que elas defequem só piora, agrava o quadro e causa mais dificuldades comportamentais. A crianças com encoprese que não são tratadas acabam sendo rejeitadas pelas outras crianças, o que causa problemas emocionais e na socialização. Outras possibilidades para o depósito de fezes de consistência normal em locais inapropriados são problemas neurológicos preexistentes, também podendo ser resultado de uma fobia de usar o banheiro.
A encoprese pode surgir após momentos traumáticos de vida, como mudança para uma nova casa, o nascimento de um irmão, fracasso acadêmico, perda de um melhor amigo ou a separação dos pais. Neste caso, ela é um comportamento regressivo em resposta a um evento estressor grave.
Megacolo: Crianças com encoprese, em sua maioria, retem fezes e ficam constipadas voluntariamente ou como consequência de evacuações dolorosas. Em alguns casos, pode haver uma condição subclínica, em que a retenção de grandes volumes de fezes determina a perda de tônus das paredes do reto e uma menor sensibilidade à pressão. E o que isso determina? Menor consciência da necessidade de evacuar, podendo haver encoprese extravasada (vazamento de fezes líquidas ou de pequenas quantidades de líquido).
Também pode estar presente em crianças com controle intestinal, mas que depositam fezes nas roupas ou em outros locais intencionalmente. Ela pode ser passageira, em resposta a um evento estressor, como nascimento de um irmão.
Alguns relatos sugerem que ela pode ser uma expressão de diversas razões emocionais, dentre as quais pode ser forma de expressar raiva contra uma punição ou contra um dos pais. Isso gera um ciclo de emoções negativas difícil de quebrar.
A evacuação involuntária pode resultar de causas psicológicas, diarreia ou de ansiedade. O curso e prognóstico vão depender das causas, sendo raro que persista além do meio da adolescência.
As famílias tendem a classificar o encoprético como preguiçoso, criando clima de tensão, os colegas frequentemente rejeitam e isolam socialmente, levando a criança a ter uma autoestima muito baixa. As crianças podem acabar usando a encoprese como uma forma de expressão da raiva. Tal situação encontra bom termo quando a família participa do tratamento e quando a criança se dispõe a fazê-lo.
O plano de tratamento envolve o uso de laxantes em administração diária, remoção cirúrgica de fezes impactadas, treinamento de habilidades para uso do banheiro e terapia cognitivo-comportamental (TCC) contínua.
Quando um dos pais decide levar a criança para tratamento, frequentemente há discordância, mas há que se criar uma atmosfera não punitiva e para redução da vergonha do paciente na escola em relação à sua condição.
Como estratégias adotam-se horários regulares no banheiro, educação, correção de ideias equivocadas, levar mudas de roupa de baixo para evitar constrangimento (ou pelo menos reduzi-lo). Se não houver constipação, não é necessário empregar laxantes.
A psicoterapia visa ao emprego de técnicas de relaxamento, tratamento da ansiedade e de outras condições, como baixa autoestima e isolamento social. Também é necessário intervir nas famílias para aqueles que tem controle intestinal, mas que continuam a depositar suas fezes em locais inadequados. O objetivo é que a criança desenvolva o sentimento de controle sobre a sua função intestinal.
ENURESE
O comportamento enurético é considerado congruente com o desenvolvimento em crianças pequenas (89% das crianças com 2 anos, 49% com 3 anos e 26% com 4 anos).
A enurese tem uma prevalência de 5-10% em crianças com 5 anos, caindo para 1,5%-5% aos 9-10 anos de idade, sendo aproximadamente de 1% em adolescentes com 15 anos ou mais. A prevalência diminui com a idade, porém a enurese afeta 1% dos adultos.
Embora não seja característica de um transtorno psiquiátrico em crianças, elas apresentam maior risco de desenvolvimento de transtorno psiquiátrico. A enurese noturna é mais comum em meninos, sendo 50% mais comum neles e respondendo por cerca de 80% dos casos de enurese infantil. É também frequente a enurese diurna nos meninos, que ficam prendendo a urina até que seja tarde demais. A enurese noturna se resolve espontaneamente em 15% por ano.
A eliminação da urina é controlada por neurônios da ponte e do mesencéfalo, além de envolver centros cerebrais e da medula espinhal, com funções motoras e sensoriais, autônomas e voluntárias.
O músculo detrusor da bexiga contrai sempre que a capacidade dela é atingida, o que leva à enurese em crianças que estão dormindo. Assim, pode haver enurese noturna sem que haja problemas psicológicos, sendo determinada apenas pelo grande volume de urina produzido à noite. A enurese diurna vai depender de hábitos e comportamentos adquiridos. Ela também pode ser determinada pela contração do detrusor, sem que haja alterações neurobiológicas. O treinamento da criança envolve segurar a urina contra um músculo detrusor normal ou hiperativo que, com o tempo, vai dessensibilizando, reduzindo a urgência miccional, impedindo a eliminação completa de urina, ocasionando a enurese noturna.
Fatores fisiológicos influenciam no desenvolvimento da enurese e o comportamento inadequado mantém o padrão mal adaptativo.
O padrão normal é estabelecido por treinamento, desenvolvimento neuromuscular adequado e cognitivo.
Há também influência da genética: em geral,crianças enuréticas têm familiares de primeiro grau com enurese, crianças cujo pai tem histórico de enurese têm risco 7 vezes maior de ser enurética, têm o dobro de chance de desenvolvimento de atrasos no desenvolvimento, sendo maior a concordância em gêmeos monozigóticos. Fatores genéticos e psicossociais podem explicar a tolerância à enurese em algumas famílias.
Crianças enuréticas sentem vontade de urinar com menor volume dentro da bexiga (mesmo com anatomia normal), é o uqe apontam alguns estudos. Em outros estudos, foram encontrados menores níveis de hormônio antidiurético (ADH) quando ocorre a enurese noturna, não havendo aparente relação com o estágio do sono (ocorre aleatoriamente). Também foi encontrada relação com fatores estressores psicossociais, como a separação dos pais, o nascimento de um irmão, mudança para um novo ambiente, internação hospitalar entre 2 e 4 anos de idade ou início da escola.
Para o diagnóstico de enurese, que pode ser involuntária ou intencional, a criança precisa ter 5 anos ou mais, devendo ocorrer pelo menos 2 vezes por semana por pelo menos 3 meses, além de causar prejuízo funcional e sofrimento. Crianças enuréticas têm risco aumentado de desenvolvimento de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).
Embora não haja exames laboratoriais para o diagnóstico, devem ser excluídas causas como anormalidades anatômicas obstrutivas (3% dos casos) ou outras, infecções do trato urinário, doenças neurológicas, estruturais ou infecciosas, espinha bífida, diabetes mellitus e insipidus, alterações do sono e da consciência (sonambulismo, convulsões, intoxicações) e efeitos de medicamentos, como os neurolépticos.
A autoestima e a confiança social são conquistadas quando a ciranças se torna continente, sendo que a maioria apresenta remissão espontânea. Até 80% das crianças enuréticas nunca tiveram um ano sem molhar as roupas ou a cama, mas pode se iniciar após um ano seco, por volta dos 5 aos 8 anos de idade. Quando começa tardiamente ou na vida adulta, é necessário investigar causas orgânicas. Além disso, devem ser investigadas causas psiquiátricas quando a enurese começa tardiamente nas crianças, como baixa autoestima, vergonha, restrição social, conflitos familiares e autoimagem ruim. O curso da enurese nas crianças depende de elas receberem avaliação e tratamento, como para o TDAH comórbido.
O primeiro passo do tratamento é revisar o aprendizado de uso do banheiro, orientando paciente e os pais. Pode ser útil fazer uma tabela, restringir líquidos antes de dormir, levantar durante a noite para levar a criança ao banheiro ou até a terapia do alarme (um dispositivo é acoplado à roupa de baixo e dispara um alarme assim que começa a emissão de urina, fazendo a criança acordar para ir ao banheiro – funciona melhor para crianças de 6-7 anos), uso de medicamento análogo do ADH, que reduz a produção de urina. Também deve-se avaliar se há constipação crônica, para a qual deve-se aumentar a quantidade de fibras na alimentação.
Terapia comportamental com condicionamento clássico, com sino, campainha e alarme, treinamento da bexiga (com recompensa por atrasar a eliminação de urina). A psicoterapia é útil para lidar com problemas psiquiátricos e dificuldades emocionais.
O tratamento medicamentoso deve ser empregado quando há prejuízo social, familiar e escolar, e quando as medidas acima não forem suficientes.
Fontes:
1) Sadock BJ, Sadock VA, Ruiz P. Compêndio de Psiquiatria - 11ed: Ciência do Comportamento e Psiquiatria Clínica. Artmed Editora; 2016.
2) American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-5 (R)). 5th ed. Arlington, TX: American Psychiatric Association Publishing; 2013.